Das Lutas
Coletivo Autônomo de Mídia
A vida ou a vidraça?

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* Por Henrique Gluck – Coletivo Das Lutas

* Graffiti de Carlos Contente

      O Rio de Janeiro vive hoje uma onda neo desenvolvimentista que prepara a cidade para ser uma capital global, ou seja, a cidade está sendo reordenada para os grandes eventos, e os grandes negócios que acompanham tais transformações vem regados, além de petróleo, de sangue e de lágrimas dos cariocas. A política econômica conduz a mudança estrutural, empresários e o governo sentam para discutir o futuro da cidade que aspira ser um balneário para realização de grandes contratos financeiros para a elite global e a elite emergente do país. O programa de mudanças é anunciado com entusiasmo pela mídia corporativa, que alimenta uma ilusão de que estamos avançando na direção certa. Mas tal ilusão não se sustenta no cotidiano da cidade, onde os corpos são submetidos a uma biopolítica racista e violenta, que se manifesta na militarização das favelas, quilombolas e terras indígenas (índices alarmantes flagram o genocídio de jovens negros e índios em todo o país), mas também nas remoções forçadas que violam direitos constitucionais e humanos (mais de 11 mil famílias sem casa), no “Choque de Ordem” que massacra os ambulantes diariamente, nas internações compulsórias em verdadeiros depósitos humanos, onde usuários de drogas e moradores de rua são amontoados sem assistência alguma. Tudo isso em nome do “desenvolvimento”.  A mentira é contada todos os dias nas novelas, nos noticiários que parecem fazer muito bem o marketing da higienização da cidade, lançando um olhar que confunde o que é mimetizado na tela com a verdade que grita nas ruas, amortecendo assim parte de toda a violência desse processo pelo qual passa a cidade. Mas a verdade é dura e corta a carne de todos, todos os dias. Basta pegar um ônibus lotado e pagar a passagem vergonhosamente cara para lembrar que dói viver nessa cidade, onde 8 horas de trabalho se transformam em quase 12 h, somando-se o deslocamento em transportes de péssimas condições. Basta também precisar de assistência médica ou de educação pública para perceber que se isso que aqui acontece está bom para alguém, esse alguém com certeza não está entre a maioria de nós. Essa cidade que planejam para nós não é a nossa cidade, não é uma cidade democrática. O flagrante agenciamento entre o público e o privado inviabiliza as possibilidades de democracia e nos desafia a radicalizar o que ela expressa como sistema político mais amplo na afirmação das liberdades e da produção de direitos.

            O que espanta não é quando um Black Bloc quebra uma vidraça, assustador é pensarmos em toda essa violência cotidiana que enfrentamos e permanecer em silêncio, resignados, os rostos retorcidos na volta do trabalho para casa, faz pensar que todo coletivo cheio, no Rio de Janeiro, tem um pouco de navio negreiro e que a escravidão mudou de nome pra levar mais gente no mesmo barco. Não obstante podemos observar também que toda ocupação tem um quê de quilombo e a resistência é um fogo que sempre esteve aceso. No entanto, no lugar das grades e das correntes temos as dívidas e a financeirização da vida, que nos encurrala entre a promessa que não podemos cumprir e a vidraça quebrada, entre a dívida infinita e a liberdade por trás dessa prisão de vidro. Quebrar a vidraça de um banco é como quebrar uma corrente que parece invisível, mas que nos aperta os pulsos todos os dias a nos imobilizar silenciosamente. Só nos resta dizer não a mais cem anos de servidão onde a força coletiva é exaurida para o gozo de privilegiados enquanto o povo é queimado como combustível para essa máquina terrível que captura a energia da vida para a lógica vazia do lucro e do consumo. As linhas de força estão sendo redistribuídas e há um excesso, algo que extrapola para além da ordem, é a multidão que se configura na emergência das vozes minoritárias, excluídas desse projeto de cidade e de mundo. Essa força produtiva e potente que escapa, vai às ruas muitas vezes como força bruta que destrói as margens de um sistema que comprime as possibilidades de vida para caber no fetiche da mercadoria. Essa grande energia multitudinal força a passagem e aumenta o espectro político democrático, mas em direção contrária vem toda uma violência estatal-corporativa-policial para sufocar o esforço vital que nasce nas manifestações. Novas formas de ser e estar no mundo, não mais condicionadas aos mecanismos de produção de subjetividade em série, emergem com fôlego e vontade de produzir rupturas político-sociais para que a produção do comum seja múltipla e horizontal, o que significa dizer, que a democracia representativa já não abarca mais as possibilidades de participação direta e ampla, isso que é o desejo que passa a reconfigurar as linhas de força e a autoprodução substitui a fôrma padrão que nos é imposta verticalmente pelos dispositivos de poder. A ideia de democracia real ganha força nas redes virtuais e presenciais, não se trata apenas de destruição, algo se constrói nos espaços livres das assembleias e encontros horizontais.

            Duas ordens conflitantes se apresentam e uma delas ameaça tudo que é vivo e já sabemos que é insustentável o funcionamento dessa lógica à longo prazo, mas a voracidade atual do capitalismo pode acabar com tudo mesmo em curto prazo. As grandes corporações se tornaram monstros incontroláveis. Contudo, do outro lado está uma nova ética instituinte que tenta encontrar seus próprios caminhos na medida em que se abre para a participação de todos e se afirma apesar das forças reativas que encontra no processo. São forças que estão em jogo e disputam a realidade e a cidade com seus funcionamentos diferentes e em luta.

            A tática Black Bloc é uma resposta imediata à ação orgânica da mídia corporativa-Estado-policial-punitivo. O Estado, através da lei, individualiza a responsabilidade, e identifica criminalmente em uma unidade penalizável os que agem fora da ordem que nos é imposta. As condições de assimetria social e econômica não são pesadas na balança da justiça, pois o Estado defende o capital e foi moldado por este. Mas não é possível criminalizar a multidão. Os jovens que utilizam a tática Black bloc usam do anonimato para encontrar espaço de liberdade em um mundo onde a identidade é uma forma de controle. O homem dócil e obediente é moldado nas escolas e pela televisão, sua formação continua na empresa que agora se interessa em moldar o “perfil” dos seus colaboradores. E o mercado já forma especialistas em gestão de pessoas. Entre escolher identidades produzidas em série disponíveis numa prateleira ou a resignação, eles escolheram o anonimato e ação.  Mas esses jovens sabem aquilo que não são e ali na multidão a luta se torna impessoal e contra- hegemônica, desafia o funcionamento ordeiro da cidade e das instituições produzindo interferência no fluxo continuo que mantém o funcionamento urbano para a produção do capital, para então fazer passar uma mensagem: Chega! É o individualismo que nos faz fracos, mas uma potência cresce silenciosa, redescobriram a potência coletiva e foram às ruas dizer que seus corpos são mais que estatísticas ou números da economia, mais do que uma ficha policial.

            É a luta contra o assujeitamento que prevalece, justamente quando os mecanismos de servidão se sofisticaram tanto que violam os próprios fluxos da vida, ou seja, hoje a pretensão de controle interfere na dinâmica vital que organiza toda a vida na terra e em cada indivíduo. São os fluxos neuroquímicos controlados por poderosos psicofarmacos, DNAs manipulados e patenteados para o biomercado, manipulação hormonal e outros artifícios de controle biopolítico que interferem na fisiologia para fazer a vida virar capital e controlar seus fluxos insubordináveis. É contra o controle que a vida se rebela em uma nova política dos corpos. Anônima, imprevisível, assustadora até. A força da multidão não é uma unidade, é composta de uma microdiversidade incrível, mas, como tudo que é muito pequeno para ser bem observado é preciso usar o instrumento certo, uma lente que permita uma visão mais ampla e sem preconceitos, sem a trave nos olhos que a mídia corporativa coloca. Há uma nova percepção de mundo emergente, as redes sociais e as novas tecnologias de informação nos permitiram entender que podemos funcionar sem um centro que nos dite as ordens do que fazer. Entendemos que podemos nos organizar de outras maneiras mais horizontais, que podemos ser as nossas próprias referências e realizamos nossa autoformação, nossa autopoiese em máquinas semióticas digitais e em outros modos imprevisíveis. Mas vamos além, vamos para os encontros nas ruas que nos transformam definitivamente.

            Quando a mídia corporativa nomeia com o termo “vândalo” algo que é uma expressão clara de que não queremos esse estado de coisas é porque o compromisso da imprensa corporativa não é com a democracia e nem com a sociedade, eles têm compromisso apenas com os investidores, com o capital financeiro que nos conduz pouco a pouco ao pior dos desfechos. Para construirmos juntos os novos rumos e as novas referências para um novo paradigma político é necessário partirmos da concepção de que não precisamos de uma ideologia predefinida ou mapa pronto, temos que cartografar essas linhas juntos, experimentando e construindo coletivamente uma democracia real, amplamente participativa e não apenas representativa e restrita aos corredores das casas do Estado. Uma nova linguagem política, um jogo onde as forças políticas estejam distribuídas sem grandes assimetrias. As bases para a verdadeira democracia real estão sendo lançadas agora. Avancemos certos disso.

            A imprensa livre digital, as possibilidades geradas nas redes sociais, os inúmeros aplicativos e softwares que permitem que cada um produza seu conteúdo e participe da construção de sentido sobre os fatos, os livros, filmes, imagens e textos virtuais que circulam na rede numa velocidade absurda afetam as subjetividades, criam novas referências e transformam as pessoas cada vez mais e, transformando as pessoas, transforma-se a política. Logo essa onda transformará o mundo. A mudança é inevitável, pode até ser retardada por um grande esforço das forças reativas da velha ordem, mas não pode ser parada. Novas ideias, discursos e novas práticas podem se apresentar como perigo contra a ordem dominante,  mas como é perigosa a vida e impossível sem suas metamorfoses dolorosas.

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