Das Lutas
Coletivo Autônomo de Mídia
A MORTE DE NELSON MANDELA E A SOBREVIVÊNCIA DO APARTHEID
Categories: Para seguir lutando

* Por Irlim Corrêa Lima Júnior – Mestrando em Filosofia pela PUC-Rio, poeta e membro da editora Confraria do Vento

 

Nelson Mandela morreu, mas não o racismo. E muitos dos que acendem nesse instante uma vela em sua homenagem ainda velam em suas vidas para que essa forma de preconceito viva acesa.

Mas o que impede, pois, que a consagração de símbolos tenha repercussão nos encontros face a face, na vida encarnada e assumida no dia-a-dia? A suprassunção de um homem em símbolo é por demasiado distante para levar as pessoas a refletirem sobre suas próprias ações e sobre o seguimento de suas vidas? Ou será que o que se sobrepõe a Nelson Mandela, através de um discurso produzido e rotulado pela mídia de massa, seja o status e o título do Nobel da Paz, um prêmio a personalidades do bem, seja qual for a causa? Isto é, a concepção de que um homem, na sua extraordinariedade, alcançou conformar-se ao arquétipo da paz, capaz de sobrepujar os conflitos acirrados intrínsecos à natureza do homem enquanto lobo de si mesmo, gerando benefícios sociais alheios? Não que tal seja inverídico, apenas que a possível verdade disso é demasiada universal e abstrata para encontrar eco em reflexões concretas para a vida.

E tendo em vista que nós, enquanto homens medianos, podemos nos dar ao luxo de colocar esse tipo de homem extraordinário em seu devido pedestal, desobrigando-nos de nos tornarmos à sua imagem e semelhança, já que se tratam essas personalidades muito mais de ídolos que baixaram à terra e nem tanto de pessoas de carne e osso. Ademais, mitigamos nossas possíveis dores de consciência ao considerarmos o ideal de uma paz perpétua como se fosse o mito de Sísifo para toda a humanidade em todos os tempos, condição que permitiria também a cada um arrefecer seus esforços pessoais, porquanto se trate sempre do absolutamente inalcançável, sendo o mundo isso aí mesmo, ainda que vez ou outra nasçam um Mandela, uma Madre Teresa ou um Gandhi, que acenam com a possibilidade de vez ou outra contarmos com certos fôlegos de esperança ou não total desesperança.

Ou ainda: talvez a associação de sua luta contra o racismo e a desigualdade sejam subsumidas na luta contra o apartheid, acontecimento próprio da história recente sul-africana. Nesse sentido, a lógica da injustiça é reificada e fetichizada num produto biossocial particular de um tempo e de um lugar (África do Sul, 1948-1994), produto que dessa lógica se deriva, mas que com ela já não tem mais tanto a ver, a não ser como remota causa eficiente, um tanto até extrínseca.

Todavia, nós brasileiros não vivemos isso, é evidente. Isso é coisa de máculas distantes em nosso passado, tempo da escravidão. Nós temos negros em tudo quanto é canto hoje em dia. E lhes damos cotas. Dispensamo-nos de sermos toscos, rudes e bárbaros em nossa lida social. Somos diplomáticos e racionais, evitamos conflitos. A coerção social direta sob violência física (ao menos de forma explicitada e ratificada jurídica e institucionalmente) é coisa do passado. Efetivamente, não há mais códigos legislativos que punam negros por serem negros. Mas isso é dispensável. Nós temos uma biopolítica, forma de controle e aparato de poder sofisticado e complexo o suficiente para que a desigualdade siga imperando, mas de forma tácita, pacífica. Nós temos, por exemplo, uma mentalidade de meritocracia e uma economia de acúmulo de capital capazes de esconder séculos de opressões e genocídios e ocultar um presente de injustiças, de expropriações e de oportunidades absolutamente desiguais. Nós temos formas de controle de violência e criminalidade, que propiciam, sob espécie de campos de concentração biopolíticos, o acúmulo de condições socioeconômicas de possibilidade para a conversão das desigualdades e injustiças operacionalizadas pelas elites dirigentes em capitalização da produção criminal por parte daqueles que habitam esses campos. Isto faz ainda mais com que esses campos de concentração acumulem criminalidade e sejam segregados da sociedade standard, ou, simplesmente, civilizada – o que significa coberta pelo Estado e idônea para receber o afluxo monetário de investimento social e econômico. Assim, as favelas, por exemplo, se mostram como essas concentrações de pobreza, de carência, de falta de oportunidades e de horizontes. Diante disso, a reversão da insatisfação completa de subjetividades em atividade de reapropriação de suas próprias potencialidades e das possibilidades de mercado que lhes são continuamente negadas, apelando para atividade criminal, era mais do que natural. Aliás, isto se dá de alguma forma planejada, por governos e corporações.

Mas e as UPPs não seriam iniciativas para interromper essa lógica de segregação e criminalização das favelas? Longe disso. É verdade que as UPPs desarticularam in loco a rede de poder semiestatal que se apresentava como poder paralelo, que tinha no tráfico de drogas e na distribuição de armas seu principal negócio. Não que isso já não mais ocorra nesses locais; ocorre, mas como todo crime deve acontecer aos olhos do Estado: por debaixo dos panos e não se arrogando como seu duplo, com bandeiras e até com funks que soavam como hinos. As UPPs, então, minaram o poder paralelo enquanto tal, isto é, como um poder que se apresenta como seu outro e em franca concorrência. Mas a intervenção do Estado nas favelas, por meio das UPPs, demonstra ainda a mesma lógica de paralelidade e segregação. A afluência de pessoas do asfalto e estrangeiros às favelas não indica a integração social da favela com o restante da sociedade. Não, mas perpetuação da favela enquanto radical alteridade, como o exótico do qual por vezes queremos ter experiências casuais e momentâneas, mas de forma alguma como aquilo a ser assumido integral e cotidianamente como modo de vida. Assim, onde quer que haja UPPs, criar-se-ão hostels, albergues, resorts, etc. Mas também residências de luxo, para quem seja mais afeito à vida hardcore.

E, no entanto, isso é apenas a ponta do iceberg. A presença do Estado nas favelas é impulsionada pelos interesses comerciais diretos ou indiretos ligados aos seus potenciais. As favelas da Zona Sul e do Centro são as que mais demonstram potencial financeiro direto, por conta de seu potencial turístico e imobiliário. As da Zona Norte, em geral, indireto: aumento da especulação imobiliária com a valorização de imóveis nas áreas adjacentes.

E a Zona Oeste? As da Barra e São Conrado evidentemente possuem tanto potencial direto quanto indireto. Como as de outros lugares, não, o Estado tenderá a protelar indeterminadamente ou para sempre essa ocupação.

A presença das UPPs leva, desta forma, o Estado às favelas, mas não o contrário. A intervenção estatal nas favelas está longe de contribuir para seu desenvolvimento social, político e humano. Ao invés disso, promove, acima de tudo, o desenvolvimento econômico de consumo. De uma parte, o Estado, por meio das polícias pacificadoras, planifica e controla os índices de violência, franqueando caminho para investimentos comerciais, turísticos e imobiliários advindos de grandes empresários, os quais necessitam de relativa segurança e condições de rentabilidade para realizarem os investimentos. O desenvolvimento do comércio local vai também a reboque disso. De outra parte, o desenvolvimento humano das favelas é da ordem daquilo que uma Dilma da vida prometeu na sua campanha de 2012: desenvolver brasileiros e brasileiras para que se tornem consumidores. As antigas promessas do bem-estar social e da constituição brasileira, que implicam gastos sem retorno imediato financeiro de capital, são revertidas em potencial de consumo. Quem, por exemplo, tiver condição de consumo de boa educação e saúde, que consuma, se desejar. Quem não, não. Porém, isso é secundário em nossa modernidade líquida marcada pelo consumismo irrefreável: o que importa são os bens de consumo em consumação da perpetuidade de consumo ilimitado e meramente transitório.

A planificação da violência nas favelas pacificadas se dá, portanto, em consonância com o processo de estratificação social da classe C, em que o grosso do que um dia foi chamado de pobre agora adquiriu status de consumidor. Isso, sem sombra de dúvida, não abre caminhos para que um morador local estude em grandes escolas, nem sequer que se trate em hospitais de ponta. Mas permite, por outro lado, que possa comprar a prazo (longo, no mais das vezes) um tablet, um smartphone ou roupas de marca. Isso lhes permite, vez por outra, cantar funks que comparam a vida das pessoas na favela com as da Vieira Souto, porque aqui e lá encontram-se produtos similares. Entretanto, a ilusão de consumo cai por terra tão logo tente um morador da favela ingressar no mercado de trabalho, entre outras coisas.

Em suma, no que consiste a pacificação das favelas? Em primeiro lugar: o controle biossocial do Estado direto sobre esses campos de concentração biopolíticos. Isto se justifica pelo fluxo de capital direto ou indireto e pela potencialização de produção e consumo. E só se justifica onde quer que esse potencial seja real: a saber, nas favelas da Zona Sul, algumas da Zona Norte e na Barra e cercanias. Onde quer que esse potencial seja nulo ou não compense devido à desproporção entre lucros visados e investimentos necessários, ali não serão instaladas. Para esses lugares há outras formas de controle. Além do poder instaurado pelas facções do tráfico, ligadas às grandes redes supranacionais de produção e comércio de drogas, com fortes ligações políticas nos governos (vide certo helicóptero apreendido com 450kg de cocaína recentemente) e empresas, há também as milícias. Tais são ainda mais de perto controladas pelo Estado: aliás, podem ser pensadas como empresas terceirizadas que atuam sob a concessão ilícita do próprio Estado, lá onde o poder estatal não poderia agir legalmente sem ter imensos prejuízos financeiros. A necessidade desse braço não-estatal das milícias ter de se gerir do crime é absoluta, pois só isto é capaz de lhe gerar por lá lucratividade, e por extensão cumprir a missão que lhe foi conferida pelo Estado de exercer vigilância e controle social desses lugares. Não à toa as milícias estão presentes mais nas favelas da Zona Oeste, onde a intervenção direta do Estado não vê razão para chegar.

 

Digredimos do tema a que nos propomos a refletir em primeiro lugar: a morte de Nelson Mandela e a dificuldade de se traduzir o seu significado para a compreensão geral das pessoas, sem decair em pacifismos inócuos e inocentes. Mas a digressão aqui empreendida, que direcionou para uma breve reflexão sobre as UPPs, no fundo quer pôr em evidência que aquilo contra o que Mandiba lutava está diante de nós mesmos: o apartheid. Como falamos, a biopolítica estatal e mercadológica prescindem de códigos de leis para exercer o controle social, garantindo as desigualdades e injustiças necessárias para a obtenção de mais-valia e lucro. Nosso apartheid é, em certo sentido, não institucional, posto que não escrito, mas nem por isso menos real.

É óbvio que a lógica do racismo atual no Brasil não é o mesmo da África do Sul no século XX. Nós temos leis contra o racismo. Contudo, nosso racismo advém de leis não escritas, presentes nas relações sociais e de poder, consistindo substancialmente em códigos sem signos, mas não menos vigentes. E é claro que há diferenças de outras ordens, mas isso exigiria uma análise dos fenômenos do racismo aqui e acolá, o que não intentamos nesse momento.

Mas há leis contra o racismo. De fato, porém, o Brasil nunca foi lá muito bom em termos de cumprir as leis. Assim, nosso racismo, na maior parte das vezes se manifesta mesmo com um jeitinho brasileiro, sempre cordial e simpático, sonso e hipócrita. Posta-se uma foto do Nelson Mandela nas redes sociais, sempre tem-se um amigo ou conhecido negro, caso se tornasse uma estrela de Hollywood adotaria cinco crianças do Congo, etc. Sim, porque naturalmente admitem-se negros na paisagem de seu apartamento de frente para a praia na Zona Sul; admitem-se fotos de negros famosos no Facebook, no Twitter ou no Instagram; admitem-se negros no mundo das ideias do seu projeto de vida caso um acaso da vida fizesse dessa pessoa um bilionário filantropo sem ter mais o que fazer; admitem-se que negros no STF e na capa da Veja, inclusive sem cotas. Mas não se admitem negros em shoppings? Ou será que é um problema local, só de uma cidade como Vitória?

A começar por nossos próprios amigos, que costumam ser pessoas de bem e civilizadas, muitos deles aplaudiriam os atos da polícia nesse shopping ou ações semelhantes, como muitos “homens de bem” e que pagam seus impostos fizeram. Muitos dos nossos amigos querem ver a massa da população negra restrita às favelas. Querem absoluta distância deles e apoiam as UPPs sem restrição alguma, inclusive com eventuais sumiços de Amarildos, o que por vezes é normal, já que tanta gente sumia com o tráfico, por que não sumir com uns gatos pingados? E acham perfeitamente normais as remoções feitas para a Copa e para as Olimpíadas. E os mesmos postam foto do Mandela, com citações apaixonadas contra o apartheid lá de longe, mas apartadas da realidade que lhe está mais próxima.

Mas a mídia não faz o mesmo? Sim; contudo, não os equiparamos. A mídia sabe a quem defende, sabe aproveitar-se dos símbolos, reapropriá-los, convertê-los, capitalizá-los, deslocando-os do seu sentido mais radical e originário, transformando Mandela em um Nobel da Paz e em luta contra um tal de apartheid longínquo, sem fazer referência crítica à lógica essencial e estrutural, preconceituosa e exploratória, à qual está subordinado e que em terras brasileiras também viceja, mas sob outros modos. A mídia transforma em notícia, em informação vendável, em circulação monetária de ideologia, mas desarticulada do seu real valor revolucionário e reflexivo, sem poder de transformação do status quo social que interessa àqueles que detêm o poder e o capital. Ou seja, em produto a ser consumido e replicado segundo a lógica do mesmo, mas não refletido e vivido em vias de transformação contestadora.

Mas e os amigos do Facebook, que não ganham nem um centavo com isso e que não parecem ser maliciosos ou astuciosos o suficiente para serem hipócritas? Qual é a dificuldade que se lhes apresenta em não perceberem que aquilo que veiculam apaixonadamente tem a ver consigo mesmos? Que o Nelson Mandela tem a ver com o Amarildo, com o shopping de Vitória, com o preconceito de cada dia? E que o apartheid tem a ver com as políticas públicas, com as UPPs, com as remoções, com os interesses de mercado, com os projetos das cidades, com as relações de trabalho, com o espaço-tempo em que cada um está inserido?

Voltando à questão: qual é o entrave para que as ideias ganhem vida? A ignorância já não mais parece dar conta dessa resposta no tempo da informação, quando os que mais compartilham as informações se mostram amiúde os menos aptos a refletirem sobre as mesmas. Alienação? Mas qual é a síntese a que não se chega e qual a dialética capaz de unificar informação e vida? Indiferença? Mas por que a paixão pelos símbolos e pelas ideias, incapazes, todavia, de serem revertidos em mudança de visão de mundo e experiências cotidianas? No que se arraigam as subjetividades que replicam símbolos e ideologias sem refletirem acerca do seu real significado e motivador questionamento? Será que o consumo repetitivo de informação conduz necessariamente ao embotamento da capacidade de pensar e da subsequente leitura crítica da realidade? Estarão os preconceitos tão enraizados no inconsciente e sublimados nos comportamentos a ponto de permanecerem praticamente intangíveis à menor possibilidade de serem repensados, mesmo quando informações que o questionam sobrevoam a consciência dos que as compartilham?

À sombra desse falta de respostas e perplexidade, Nelson Mandela, transformado em informação midiática e curtição desenfreada, vive morrendo ao ser alienado das lutas e resistências que travou durante a sua vida. O Nobel da Paz não foi senão o reconhecimento do objetivo final que sempre foi o pressuposto essencial de sua atuação revolucionária, a paz a ser alcançada. Mas também a meta pressupõe toda a luta, pois sem esta jamais poderia ser vislumbrada e alcançada. Por seu turno, o apartheid, embora segundo sua configuração histórica determinada possa ter morrido, sua lógica imanente e universal continuamente ressuscita, sempre multifariamente, e cada vez mais sutil e complexa, menos dependente dos valores culturais (não obstante os incorpore) do que da estrutura biopolítica do sistema.

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