Das Lutas
Coletivo Autônomo de Mídia
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Protesto em Vitória – ES

por Henrique Gluck *

“Há algo novo nascendo nas redes sociais, as digitais e as de corpo presente, que também estão se transformando em experimentações para novas formas de autoprodução e auto-organização coletivas. É a tecnologia usada como ferramenta para novos encontros, e a potência desses encontros é o fortalecimento de redes que vão diversificando as formas de agir, de ser e interagir no mundo.” 

A grande imprensa e o Estado vem praticando uma narrativa policial e uma ladainha moral que tenta esvaziar o sentido político de uma manifestação popular legítima que emerge da falta de credibilidade nas instituições ditas democráticas. A agressividade nas ruas tem um alvo que parece ser bem definido e um recado a ser dado. Apesar de não passarem nem perto da pauta dos grandes jornais, os componentes de luta anticapitalista estão mais que evidentes. Parece que é algo sobre o quê não se pode falar, pode ser perigoso demais despertar pensamentos tão incendiários. As pessoas desejam participar mais da construção política da cidade e são marginalizadas de maneira sorrateira, sem sequer serem ouvidas. A pressão aumenta e o que entornou nas ruas foi o transbordamento de um descontentamento geral, os milhares que estão ocupando os espaços públicos representam muito mais o povo como um todo do que os que se dizem seus representantes legais. Mas a questão não é mais essa, que envolve representar ou não. É tempo de se apresentar, se tornar presente e reconquistar o que é público, o que é de todos.

Pacíficos e não pacíficos estão ali, juntos, na multidão. Criminalizar é identificar, personalizar e podem criminalizar um indivíduo, mas não a multidão. Não se trata de promover destruição, é sempre muito mais importante construir afirmativamente e fortalecer redes e atitudes criativas. Por outro lado, a agressividade não surpreende, como reação tanto à violência policial oficial e à paisana (P2) quanto à apatia fleumática e disciplinada que aceita a servidão voluntária do mundo moderno passivamente. As pessoas estão na rua por terem a percepção de que são enganadas, roubadas e exploradas. Sabem que produzem a riqueza que é expropriada por diversos meios: sistema financeiro, Estado, e megacorporações que dominam os mercados. Mais adequado seria perguntar: Por que não fizeram isso antes? Mas os entrevistados ou os que recebem o close das câmeras comentados por um especialista em segurança são os  atos e indivíduos criminalizados, ao invés dos cortejos de desempregados, precariados, revoltados com as remoções, vítimas de violência policial, indignados em geral.

Despolitizar e criminalizar: o Estado policial é o clichê neoliberal mais grotesco. Sua reprodução só é possível através das narrativas simplistas e dicotômicas veiculadas pelo quarto poder. As mídias de comunicação de massa são dominadas por apenas seis famílias no Brasil e alguns políticos são donos de redistribuidoras de sinal (Sarney e Jader Barbalho, por exemplo). Enquanto eles omitem os fatos e repetem mentiras tantas vezes para parecer verdade, as assembleias estão se organizando. O que está acontecendo é perturbador para eles e é claro que o governo e a mídia dão as mãos pela manutenção do status quo da democracia representativa e pelo oligopólio nas comunicações. Vão se defender contra qualquer coisa nova que ameace seu poder constituído. A mudança tem que ser radical, é um conflito entre o poder popular instituinte e o poder estatal instituído. Quem não quer dialogar? A discussão política está na mesa que foi posta pelo povo, mas está capturada e não dá para discutir boletim policial. Mas transformação política certamente dá. No entanto nem o governo e nem a mídia está colocando em pauta. Não há como estancar a ferida enquanto a faca ainda corta a carne de todos nós. O aumento do custo de vida, a violência do Estado, o desespero da dívida, a volta para casa que exaure o corpo no transporte caro demorado e ruim, quando a alma já foi roubada pela produção do dia, tudo isso não tem a cara dos vândalos, é o capitalismo e o controle administrativo da produção vital que tem nos roubado o sono e os sonhos.

Historicamente, o Estado sempre reagiu com muita violência quando pressionado por levantes populares. O que percebemos hoje é um cuidado maior para manipular a opinião pública e criar factoides para legitimar cada passo dado pela máquina estatal com um discurso ensaiado da imprensa. Ou seja, há um cálculo administrativo orquestrado para controlar a opinião pública e produzir fatos, como um jogo de cartas marcadas. De início, tentam identificar lideranças, mas como isso não é possível em uma organização distribuída em rede, a estratégia passa a ser criminalizar as ações coletivamente, e a “formação de quadrilha” tem sido, com frequência, usada para tentar enquadrar as ações em uma tipificação criminosa. A fixação pelo crime e pelo criminoso é sintomática da relação entre o Estado policial e a imprensa. A grande imprensa tem omitido as informações sobre violência policial e violação dos direitos humanos. Há um acordo tácito entre o governo e o oligopólio da imprensa. Uma ação mais enérgica do Estado já pode ser percebida pelos enunciados desse discurso, que começa a produzir demanda por mais segurança e mais Estado. É o mesmo discurso que sempre esteve à mesa, arrotado como se fosse uma verdade insofismável, afinal, para alguns o “deu na Globo”, ou “deu no repórter” ainda soa como a palavra final. Há ainda os que aprenderam a confiar na televisão e nos jornais. Foram criados por uma caixa de luzes de modo tão familiar quanto uma mãe, acostumaram-se a ver os jornais como a última palavra em termos de fatos.

Mas há outra geração, que já nasce pensando em rede e já não é mais passiva diante da informação, gente antenada nas ondas do wi-fi, nos programas de código aberto (softwares open source), nos sistemas de financiamento coletivo (crowdfunding) e de desenvolvimento de projeto coletivo (crowdsoursing), entre outras mirongas do cyberespaço. Há algo novo nascendo nas redes sociais, as digitais e as de corpo presente, que também estão se transformando em experimentações para novas formas de autoprodução e auto-organização coletivas. É a tecnologia usada como ferramenta para novos encontros, e a potência desses encontros é o fortalecimento de redes que vão diversificando as formas de agir, de ser e interagir no mundo. São mudanças nas relações estruturais de trabalho, produção de autonomia de mídia e livre informação. A democracia nunca mais será a mesma, a percepção do mundo em rede na era do compartilhamento já acontece e já é uma revolução iminente, que não vai demorar para transformar radicalmente a vida por aqui. São os fluxos que se liberam do fixo e das tentativas de captura de sua energia vital. Essa força livre, ao mesmo tempo criadora e destruidora, está aí com a potência de um tsunami inesperado a arrastar velhas estruturas de poder com suas éticas verticais. O que se produz nas relações é a vida. O capital transforma a vida em mais-valia e nos mata ao nos alienar de nossa própria produção-vida. O povo na rua é a retomada da vida ao seu rumo como fluxo, e não como fixo. A vida é insubordinável à norma, a única norma que fica é a que afirma a vida. O desejo carrega tudo que nega o tempo, como um rio que se renova no próprio espaço que ocupa.

Preocupa a muitos saber qual é a pauta do movimento que está nas ruas, mas isso emerge como falso problema. Sabem muito bem o que não querem, negam a representação e afirmam, em seu lugar, a multiplicidade de pautas e desejos que compõem mais aproximadamente a complexidade e a pluralidade da realidade. Se fizermos outro modelo de democracia, no estilo instantâneo e sem sentarmos para um debate que inclua a todos e todas, isso será persistir em um erro. Não deve ser um privilégio político a gestão da riqueza e dos recursos produzidos pela força coletiva de todos. Enquanto políticos e grandes empresários decidirem o futuro da humanidade, não haverá a verdadeira democracia e não adiantará reformá-la. A possibilidade de uma democracia plena (não a burguesa) está fazendo força para nascer sem ser abortada pelas forças reativas que tentam resistir à potência vital que explode nas ruas.

O termo democracia (demo = povo e cracia = poder) nasceu na Grécia, berço do mito dos deuses do Olimpo. O implacável Cronos (deus do tempo) devorava seus filhos, pois sabia que um deles lhe tiraria o poder. Mas a esposa do deus tirano conseguiu esconder a criança do marido, dando-lhe uma pedra no lugar do filho, e esse (Zeus) libertou da barriga do pai os seus irmãos devorados, que, ao se tornarem livres, derrotaram o deus do tempo e se estabeleceu o novo, o Olimpo, o governo dos irmãos. No eterno retorno do mito, o que se repete sempre é o inaudito, o excesso que derruba a norma e instaura a normatividade, ou seja, a atividade criativa de afirmar novos paradigmas.

Que as assembleias nas praças, nas comunidades e nos condomínios virem do avesso o poder do Estado. Em cada encontro é perceptível o desejo de criar conexões que se fortalecem em atos e atitudes, compõem o corpo vivo e aberto ao mundo, que nasce como coletivo em coletivos. É a microrrevolução, o monstro sem nome, a multidão que dissolve o macro para tornar tudo fluxo e, do fluxo, afirmar a vida onde teimam em reduzí-la a capital, mercadoria, fetiche. A transgressão ultrapassa o limite e força a linha que nos divide para ir além. Além do ego, um eco, além do eco, um coro, além do coro, corações e ritmos que entoam a vida como obra coletiva. A pedrada no vidro dói na propriedade privada, no bolso do burguês e do ávido aspirante a tal gozo individual, mas o tiro de fuzil na favela que mata de graça e não dói no peito da senhora do Leblon, dói na empregada doméstica que perde o filho e a esperança. Enquanto a cidade estiver partida, o único lugar de encontro se torna o abismo. Portanto, é criando pontes, e não muros, que se faz democracia. Quando o novo chegar, definitivamente, não vai pedir licença para nenhuma autoridade.

A tirania sofisticou as formas de controle dos corpos, suavizaram a maneira como exercem poder e chamam isso de democracia, ousam dizer que isso é liberdade. Mas muitos já sabem como funcionam os mecanismos de controle e já aguardam, insones, o momento de cessar com todo esse sofrimento, imposto como estrangulamento de nossa potência livre pelo poder de captura capitalista das relações de produção. O gigante não vai acordar, ele morreu, somos os devorados saindo de dentro de seu cadáver e temos que cortá-lo logo, enquanto outros ainda teimam em se alimentar dele. O jantar foi indigesto, como Midas, ele queria transformar tudo em ouro, mas o vil metal lhe foi mortal. O gigante morto será o capital? Não sei, mas não tente mais acordá-lo. Com ele morto, é a vida que segue. Já passou o tempo dos gigantes, como disse o herói ao gigante de um olho só: “meu nome é ninguém”. Como ninguém pode ser encontrado, somos todos multidão. Horizontal sem estar deitado e grande sem ser maior que ninguém. Amanhã vai ser maior!

* Henrique Glück é integrante do Das Lutas

1 Comment to “Novas invenções: redes-corpos-ruas”

  1. Mônica Bragança says:

    Maravilhoso, sem comentários, já que palavras a mais iriam ser desperdiçadas. Sigamos na luta sempre )0(