Das Lutas
Coletivo Autônomo de Mídia
Pequenos contos sobre a realidade e violência de ser mulher
Categories: Para seguir lutando

Machismo-marcas-invisíveis

A luta é todo dia, contra o racismo, o machismo e a homofobia

Por uma feminista anônima para o Das Lutas

Depois de toda a polêmica que a Marcha das Vadias “causou”, resolvi pensar o “ser mulher, ser feminino”, em temas tão polêmicos quanto a performance do Coletivo Coiote, que surpreendeu a tantos. Resolvi pensar cada ponto e escrever algo sobre eles, de maneira confessional ou ficcional, dependendo do olhar do leitor. Apenas uma contribuição de uma mulher, ativista, sobre o que é ser uma mulher em tempos neoliberais que em nada são libertários.

Bonecas e Árvores. Só tenho irmãos, gênero masculino, e sempre gostei de brincadeiras de meninos. Aliás, gostava de brincadeiras em que podia estar com meus irmãos. Mas nunca brincamos de bonecas. Eu até tentava, mas sempre vinha um tio inconveniente dizendo: “Boneca é coisa de menina, você são viados?”. E eu me pegava sozinha. A heteronormatividade me isolava por eu ser menina. E lá ia eu pro quarto brincar sozinha. E quando cismava de brincar de subir em árvores? Sempre ouvia que tinha que me dar ao respeito, que meus irmãos podiam ver minhas calcinhas. E eu parei de subir em árvores.

Vergonha. Outra questão que sempre foi tabu na família foi a troca de roupa. Quando pequenos, tomávamos banho juntos, brincávamos na piscina, e eu só com a parte de baixo do biquini. Na fase em que comecei a desenvolver seios, passei a ouvir constantemente: “não se troca na frente dos seus irmãos, cobre suas vergonhas”. Eu não entendia porque meus seios ou minha vagina deveriam ser vergonhas, mas me sentia tão constrangida por esses comentários que demorei a ter uma relação mais livre com meu corpo.

Abuso. Tenho pouquíssimas lembranças da minha infância, eu nunca entendi muito bem porquê. Tratei isso em terapia, busquei compreender minhas questões. Duas imagens eram recorrentes. Um menino mais velho do colégio que eu estudava, que me chamava de Maria Peidona, e me humilhava em sala de aula, mas me convidava constantemente para ir à casa dele brincar. E eu ia, pois achava que ele queria ser meu amigo. Anos depois comecei a sonhar que à noite ele me tocava nessas visitas. A outra imagem recorrente era a de uma amigo da minha mãe que me deu um livro sobre duendes. Numa viagem pro nosso sítio, ele propôs de fazermos um altarzinho pros duendes visitarem de madrugada, e ficarmos esperando até eles aparecerem. Montamos juntos e ele ficava fazendo carinho nos meus cabelos e me dizendo que os duendes iam adorar me conhecer. Um pouco antes do começo da “vigília”, minha mãe apareceu com uma cara apavorante e me levou pra dentro. Me disse pra nunca mais ficar sozinha com ele. E ela nunca mais falou com aquele amigo. Demorei a entender que talvez tenha acontecido algo que eu não tenha processado.

Estupro. Com 15 anos, eu resolvi que queria perder a virgindade. Tinha amigos mais velhos, mais livres, que falavam de sexo de maneira simples, como se fosse algo que eu deveria fazer. Eu concordava com isso, mas meu namorado ainda achava que era cedo, pois eu era “moça de família”. Comecei a me relacionar com um homem mais velho, que era inteligente e interessante. Ele morava próximo, e todos nós íamos para a casa dele beber e ver filmes. Uma noite dessas, alonguei minha estadia lá e achei que seria legal transar com ele. Mas na hora, desisti. Ele não. Ele foi categórico: “não dá pra desistir agora”. Demorei um tempão para descobrir e aceitar que ele havia me estuprado. Eu achava que tinha sido minha escolha, que eu tinha quebrado um “tabu”. E nem percebi que demorei mais de 2 anos para ter outra relação sexual.

Aborto. Na adolescência, passando pra idade adulta, conheci um homem. Me apaixonei. Coisas normais das relações humanas. Numa virada do destino, ou do ovário e do espermatozóide, engravidei. Peguei o telefone e liguei para esse homem, falando o que havia acontecido. Ele falou que eu me virasse, que não era responsabilidade dele. Perguntei: Como não? É nossa responsabilidade, nós fizemos isso juntos! E, mais uma vez ele se colocou como alheio à situação. “Como vou saber que é meu mesmo? Você tem jeito que dá pra todo mundo! Se vira, não quero saber de filho, já tenho dois!”. Fui pra clínica, entre lágrimas e medo. A anestesia não pegou e eu senti tudo. Tive uma hemorragia absurda e fiquei anêmica. No mesmo dia, uma menina de 16 anos morreu.

Preconceito. Minha família (núcleo menor) estava passando por uma situação muito delicada financeiramente. Muita luta e muita angústia. Recebi uma ligação de uma pessoa da família, já aos berros na primeira palavra. Dizia assim: “Essa situação é culpa sua! Você é a responsável pela desgraça da família, porque coloca esses demônios dentro de casa! Essa religião de puta e viado!”. E desligou o telefone na minha cara. Sou do candomblé desde 14 anos. Na época a pessoa era evangélica. E hoje essa pessoa é católica, de assistir missa todo domingo.

Intolerância. Devido minha participação como manifestante e ativista das lutas feministas na Marcha das Vadias, que ocorreu durante a Jornada Mundial da Juventude Católica, fui recriminada, excluída e ameaçada. Não somente por estranhos, mas por conhecidos bem próximos. Mas não na minha cara, porque seria estranho. É mais fácil me violar e violar minhas escolhas pelas costas. E é mais fácil seguir na intolerância de maldizer uma manifestação que você não entende, do que buscar saber porque ela existe e qual o seu contexto no Brasil e no mundo.

Violência psicológica. Fui ao motel com o namorado da época. Era a primeira vez que íamos transar, eu estava super entregue, feliz e apaixonada. Depois de tudo, ele se levantou e foi ao banheiro. De repente, vira pra mim lá de dentro e diz: “Você precisa emagrecer, hein?”. A autoestima foi no pé. Mesmo depois de se explicar e dizer que não era bem isso que ele queria dizer, ficou uma marca. Não foi a única inadequação criada por ele. Minha vagina era uma questão pois não gostava de depilar completamente como ele gostava, dentre outras reclamações e comentários depreciativos.Decidi que a psicopatia dele não cabia na minha vida nem no meu sexo. Mas os espelho eventualmente me angustia.

Alívio. Apesar de ter crescido num ambiente extremamente machista, aos poucos fui vendo paredes ruindo, os homens partindo e as mulheres segurando todas as ondas. Criando os filhos sozinhas, trabalhando fora, rompendo com todas as amarras. De repente, me percebi numa família de mulheres fortes, inteiras, sem precisar de uma contrapartida masculina para manter uma família funcionando, sem odiar os homens por não estarem ali. Elas eram suficientemente completas pra dar conta daquilo que eles tinham incapacidade ou medo de se comprometer. Não era um feminismo acadêmico, mas um feminismo empírico, aqueles que se sente nos ossos e sangue. Meus irmãos se apaixonaram por mulheres fortes, um alívio. Machismo cortado na carne.

Medo. Todos os livros que leio, todas as teorias que apreendo, todos os debates que participo ainda não dão conta da injustiça contra as mulheres. Ainda somos violadas, violentadas física e emocionalmente, ainda somos julgadas pela forma de vestir, pela forma de falar, não temos a liberdade de andar na rua sem ouvir piadinhas, ou cantadas inapropriadas e grosseiras. Não podemos ficar sozinhas por estar sozinhas sem alguém questionar sua condição sexual. Tenho medo de não ver um mundo menos machista ainda na minha geração. De não ver menos mulheres morrerem devido à ilegalidade do aborto, de não ver menos estupros, menos violência causada pela heteronormatividade falocêntrica.

Luta. Esse ponto está em aberto. “A luta é todo dia, contra o racismo, o machismo e a homofobia”.

Acho que todas as mulheres que já viveram violências machistas deveriam falar sobre isso agora. Pra mostrar o que realmente é violência, e porque as mulheres estão nas ruas. Que o machismo está entranhado na sociedade, que não é uma coisa simples de se resolver.

1 Comment to “Pequenos contos sobre a realidade e violência de ser mulher”

  1. Violência não pode ser bem-vinda nunca. E como se manifesta todos os dias, deve ser combativda diariamente